Novas reflexões sobre o conceito de espontaneidade/criatividade, multiplicação dramática e narcisismo

Resumo: No artigo “Novas reflexões sobre o conceito de espontaneidade/criatividade, multiplicação dramática e narcisismo” o autor apresenta uma revisão dos conceitos morenianos de espontaneidade/criatividade e acrescenta alguns conceitos oriundos da multiplicação dramática relacionados ao narcisismo: ponto de vista molar e molecular, ressonância multiplicadora e criação estética do ponto de vista da semiótica.

Palavras chaves: espontaneidade / criatividade – narcisismo – molar / molecular – multiplicação dramática – psicodrama – ressonância – semiótica.
Psicodrama da queda de Deus:

Criança amiga: – “Porque você não voa? Moreno: Estiquei meus braços para tentar. Um segundo depois, cai e me vi no chão, com meu braço direito quebrado. ”
Processamento dramático, multiplicado a longa distância vários anos depois:
nesta cena podemos concretizar os seguintes personagens entre os que já apareceram:
1- Uma criança exercendo o papel de Deus tentando voar.
2- Uma cigana que faz um vaticínio de que esta criança se tornará um grande homem, com gente do mundo todo vindo vê-lo, ele será sábio e bondoso.
3- Uma mãe que acredita neste vaticínio e passa a tratar essa criança de maneira especial, preparando-a para a sua futura jornada. Passa a incentivar a brincadeira de ser Deus como um Role Playing da sua futura vida.
4- Deus, pai de si mesmo e todo poderoso.
5- Deus de braço quebrado.
O que poderia ser tratado como um episódio trágico parece que marcou uma semente do que viria a ser depois conceituado por Moreno como uma característica fundamental do ser humano, ser Deus ferido e imperfeito. Talvez porque a brincadeira de ser Deus continuou sendo jogada e admirada permitindo ser incorporada ao seu ideal do eu como um valor e código fundamental. “A única forma de livrar-se da síndrome de Deus é desempenhando-a”.(1p.53) Longo trajeto este que começou de um estado de onipotência narcísica bem nutrida pela sua mãe/cigana até desembocar na divisa sintética do poema moreniano publicado pela primeira vez em 1911:

“… e quando estiveres perto, arrancar-te-ei os olhos
e colocá-los-ei no lugar dos meus;
E arrancarei meus olhos
para colocá-los no lugar dos teus;
Então ver-te-ei com meus olhos
E tu ver-me-ás com os meus….”

A propósito deste episódio Castilho diz que existem 3 processos possíveis de desenvolvimento vital: um que chama de -normativo – no qual alguém joga o papel de deus e quebra o braço; um segundo chamado de – narcisista – que joga o papel de deus , mas não pode cair porque isto seria humilhante; e um terceiro, chamado de – borderline – que nem brincando puderam ser deus para alguém. (2)

Fim do processamento.

Alguns anos depois , já adulto, em 1921, logo após a I Guerra Mundial, Moreno funda, em Viena, o Stegreiftheater, Teatro da espontaneidade, um dispositivo que Moreno recorre para continuar investigando a espontaneidade/criatividade. Em 1911, como uma estratégia para a introdução do tema da representação dramática espontânea, realiza diversas encenações da peça intitulada “A divindade como ator”. O tema central da peça é uma representação teatral, tratando-se, portanto, de um teatro dentro do teatro. Nessa peça, um espectador questiona o ator que representa o papel de Zaratustra* . O espectador, representado por Moreno, tira o ator do papel e estimula-o a representar a si mesmo, o próprio ator. Podemos dizer, então, que Moreno já mostra o caminho da participação da platéia na criação improvisada a partir de suas próprias vivências.

No decorrer da peça, Moreno, no papel dele mesmo, assim se expressa:
“Ao representar você mesmo, você se vê em seu próprio espelho no palco, exposto como agora está a todo o público. É este espelho de você mesmo que provoca nos outros e em si próprio a risada mais profunda, na medida em que você enxerga seu próprio mundo de sofrimentos passados dissolvidos em acontecimentos imaginários. Subitamente, ser não é doloroso ou agudo, mas cômico e divertido.”(3p.39-40)
Moreno fala de um novo olhar espelhado através do grupo, um novo olhar de júbilo, a partir da di-versão dramatizada.
Mais adiante, continuando na mesma peça, formula um diálogo:
“Moreno- Acho que o riso teve início quando Deus viu a si mesmo. Foi no sétimo dia da criação, que Deus, o criador, voltou a olhar para seus últimos seis dias de trabalho -e estourou – gargalhando de si próprio.
Ator- Esta também é a origem do teatro.”(3p.39-40)
Esta di-versão ocorre quando as pessoas estão com prazer de dramatizar e se di-vertem com isso. São mais versões do mesmo fenômeno. Isto não que dizer que seja sempre alegre, assim como uma peça de teatro ou um filme podem divertir sem ser comédia. Divertir-se não é distrair-se. Divertir é ver de outra forma, uma nova visão transformadora. Não estou me referindo aqui a rir do protagonista, mas ao contrário, a rir ou chorar com ele, de si mesmo e dele. Consta que Moreno teria dito que gostaria de ter um epitáfio com os seguintes dizeres: “Aqui jaz um homem que abriu as portas da psiquiatria à alegria” (4p.23).
O teatro espontâneo para Moreno vai se constituindo como um instrumento de pesquisa da espontaneidade. O acento recai no momento da produção e não no produto acabado. Seu objetivo é fazer do teatro um instrumento de ensino / aprendizado ativo, e não um produto para consumo passivo.
Moreno caracteriza o Psicodrama como sendo uma forma de produção dramática espontânea, onde os participantes são a fonte material, a produção e os beneficiários imediatos da ação. É um ato cooperativo comunitário sem elemento estranho que produza parte alguma do ato (3p.148).
Moreno aborda a espontaneidade junto com o conceito de criatividade, dentro da filosofia do momento. A espontaneidade é um estado, uma qualidade da ação e a criatividade é um ato. A espontaneidade estimula e dirige o ato criativo.

Segundo Moreno, as características do ato espontâneo / criativo são: (5p.84)
1) o criador tem a sensação de ser espontâneo, isto é, há um ato de sua livre vontade e que nasce de seu íntimo;
2) o criador tem a sensação de surpresa, de inesperado;
3) o criador tem a sensação de irrealidade, algo novo acontecendo, relacionada com a capacidade de modificar a realidade da qual surge e para a qual se impulsiona. Nesse momento o nexo causal se modifica;
4) o criador tem a sensação de ser sui generis em relação a si próprio, criador mais do que em relação à criação, um estado de consciência alterado;
5) o criador tem a sensação de integração da consciência com diversas sensações corporais, é uma concretização de uma intenção imperativa, com a diminuição do ego observador, o criador está imerso na ação;
6) o criador manifesta as suas idéias traduzindo-as em ação rapidamente. ( fome de atos )
Pode-se ainda acrescentar outras características relacionadas com um ponto de vista externo ao criador:
7) o estado de espontaneidade tem um ritmo próprio, uma fluidez com aumento e declínio semelhantes aos ciclos vitais;
8) angústia e espontaneidade são inversamente proporcionais, i.e., quanto mais angústia, menos espontaneidade e vice-versa.
9) a espontaneidade é contagiosa em relação aos outros, ou seja, provoca novos estados espontâneos concomitantes, produzindo uma sensação de expansão do Eu, (tele) na dependência das resistências vinculares presentes naquele determinado momento. Essa sensação de expansão do Eu (tele) se traduz por um se sentir por dentro do outro e vice-versa.
A espontaneidade, portanto, é reconhecida por meio dos efeitos que produz no criador e à sua volta, em quem o acompanha e em relação à sua criação, envolve personagens, criação e o entre. No mundo interno do protagonista, externo, nos vínculos e entre tudo isto(6). Produz ressonâncias/ agenciamentos nos corpos dos personagens da cena, nos sujeitos do grupo platéia e no acontecer grupal .
Outra característica do ato espontâneo / criativo é a adaptação. É preciso ressaltar que adaptação não é subordinação ao meio. Na verdade o meio é constituído e selecionado pelo ser. O ser “recolhe as influencias e as qualidades que correspondem às suas exigências …Neste sentido, o organismo não está jogado num meio ao qual ele tem que se dobrar, mas ao contrário, ele estrutura seu meio ao mesmo tempo em que desenvolve suas capacidades de organismo.”(7p.258) Interessante conceituação de adaptação onde o ser adaptado é aquele que é normativo em relação às suas necessidades e não subordinado ao meio.

Moreno ainda classifica os estados espontâneos/criativos em quatro tipos:
a) qualidade dramática, a qual entra na ativação de conservas culturais e estereótipos sociais conferindo vivacidade e novidade a eles; b) criatividade, a qual participa na criação de novos organismos, formas de arte, estruturas ou padrões; c) originalidade, a qual é relacionada à formação de livres expressões da personalidade, expressões únicas e singulares de sentimentos; d) resposta adequada às novas situações(5p.139 ).

Metapraxis:
Para Moreno, a lógica dos processos espontâneos / criativos articulam-se com a metapráxis, sendo entendida como oposta à metafísica. A metafísica é o ponto de vista da criatura, da coisa que é criada, enquanto que a metapraxis é o ponto de vista do criador. Os conteúdos da metapráxis “não estão afeitos a desenvolvimento, a causa e efeito, às regras da indução e da dedução. Metapraxis não é uma filosofia dogmática nem crítica; é uma filosofia da criação pura; milhões de mundos imaginários são igualmente possíveis e reais, de valor igual ao mundo no qual vivemos e para o qual foi construída a metafísica. Consiste de generalizações que se referem a todas as manifestações especiais da não existência. A metapraxis enquanto sistema de mistério iminente não pode ser expressa. Não é lógica , nem antilógica,; nem psicológica, nem antipsicológica; nem física nem antifísica; nem empírica nem antiempírica; é imperceptível, indiferenciada, irrazoável” (3p.49). O campo da metapráxis indica o campo da descoberta antes dela ser feita, se abre para o acaso. Depois da descoberta o campo é das coisas possíveis ou com relação de possibilidade entre elas, isto é, compossíveis, é o campo da metafísica. Estas mesmas coisas, antes da descoberta, tinham uma relação de incompossibilidade, onde situa-se o campo da metapráxis .

Modelo do catalisador / enzima alostérica
A espontaneidade, para Moreno, é considerada um fenômeno primário positivo, situada entre a hereditariedade e o meio ambiente, não derivada da libido, não motivada pela falta. Moreno chama-a de fator E. Ela é influenciada, mas não determinada, pela hereditariedade e pelas forças sociais. Não atua segundo um modelo energético de acúmulo e conservação de energia constante. É uma disposição, uma preparação para a livre ação do sujeito. Entre os modelos físico-químicos Moreno prefere a comparação com um catalisador, precisa da sua presença para que uma reação química se acelere, mas não toma parte na reação química em si. O fator E influencia novos atos combinatórios e permutações, escolhas e decisões; é a partir dele que surgirá a matriz espontânea criadora da personalidade, o modelo do catalisador não se refere a novas combinações, mas somente aceleração de combinações já existentes. Entre os modelos físico-químicos existentes hoje em dia, eu prefiro o da enzima alostérica que contempla a realização de uma nova combinação e não somente a aceleração de reações já existentes

Núcleo psicodinâmico e estrutura referencial do Psicodrama:
Moreno afirma que a espontaneidade é o locus do Eu e a matriz da capacidade criadora. Para ele, “O self é como um rio que flui da espontaneidade, mas tem muitos afluentes subsidiários que lhe provêm seu sustento”(3p.21).
Mas se o rio (Eu), a que se refere Moreno, nasce da espontaneidade, suas margens, os vales por onde vai fluir, a região que vai percorrer, tudo isso se dá pela interação dos papéis (Sociometria): “A espontaneidade é uma qualidade da conduta, enquanto que o Eu é uma estrutura que opera”(8p.23). A espontaneidade é o núcleo psicodinâmico do psicodrama, enquanto a sociometria nos aproxima da estrutura do referencial psicodramático. A espontaneidade flui e a sociometria nos indica como os papéis operam e se estruturam.
Para Moreno, o que permite a passagem entre o real e a fantasia é o fator E(5p.123).É o fator E que impulsiona a evolução do primeiro para o segundo universo moreniano.

Multiplicação Dramática:
A multiplicação dramática na linha de pesquisa dos estados espontâneos criativos e articula algumas contribuições para a melhor compreensão e reconhecimento desses estados. A seguir passo a enumerar algumas das contribuições que destaco.(9)
Direção desde o ponto de vista do primeiro universo e do segundo universo moreniano (ou Molar / Molecular)
A primeira contribuição da multiplicação dramática diz respeito a uma melhor caracterização do estado de espontaneidade do ponto de vista do diretor, integrando alguns aspectos psicodinâmicos relativos ao seu desencadeamento. Pavlovsky apresenta dois pontos de vista possíveis do coordenador grupal. Ele formula dois conceitos oriundos de Guattari: a forma molecular de compreender o grupo e a forma molar (10p.11-54). O entendimento desses dois estados muito contribui para a caracterização dos estados de espontaneidade. A forma molecular é a direção a partir do primeiro universo moreniano e a molar é a partir do segundo universo moreniano. Tal caracterização é fundamental, pois se constitui no fio de Ariadne que faz com que o Psicodrama passe por climas muitas vezes caóticos, onde o diretor não tem outra referência que não seja a de que está num estado de espontaneidade. Vou tentar caracterizar esses dois pontos de vista.

DOIS PONTOS DE VISTA DO DIRETOR:
PRIMEIRO UNIVERSO SEGUNDO UNIVERSO

PRIMEIRO UNIVERSO SEGUNDO UNIVERSO
ou molecular, ou da matriz de identidade, ou onírico ou molar, ou da matriz familiar, ou da matriz da brecha entre fantasia e realidade
longa duração do tempo / não cronológico / sem antes e depois tempo cronológico / com antes e depois
sem próximo e distante com próximo e distante
sem interno e externo com interno e externo
vai surgir o sentido ao longo da direção dirige com hipóteses
zero de intensidade do coordenador assinala transferências, formula interpretações que ordenam, acompanhado por autores, visibilidade das técnicas
máximo registro de conexões
micropercepção sem hipóteses
cenas tênues
máximo lúdico
a-representativo / novos sentidos originais deslocamento de representações
máxima ambiguidade não contradição
maior informação e menor significado aumenta significado e perde informação
imagens desordenadas
intensidades e fluxos
processo primário de Freud processo secundário de Freud
primeiridade de Pierce secundidade de Pierce

O ponto de vista do segundo universo moreniano (molar) é semelhante à realização de um desenho que tem um projeto pré-existente, se apóia nos integrantes do grupo e na sua rede vincular, é sociodramático. O coordenador intervém por meio de linhas de ordenação interpretativa e dirige o protagonista com hipóteses, assinalamentos de transferências e utiliza-se visivelmente de técnicas dramáticas. O coordenador mostra-se bastante presente e sente-se acompanhado por autores e sistemas referenciais (11pp19-22). Aumenta o significado com perda de informação. É pouco contingente para o acaso. O ponto de vista do segundo universo (molar) trabalha com a lógica aristotélica e a lei da não contradição. As unidades são personológicas e vinculares. Aproxima-se da lógica do processo secundário, e também da categoria da secundidade da Semiótica de Pierce , isto é o que é correlativo, objeto, relacional, correspondente à ação e reação dos fatos concretos, existentes e reais.
Além disso, o ponto de vista do segundo universo (molar) constitui-se numa base, um pré-requisito para a passagem ao ponto de vista do primeiro universo (molecular).
Já o ponto de vista do primeiro universo (molecular) é semelhante ao que permite a um desenhista desenhar o que ele ainda não tem em mente, irá surgir ao longo do próprio ato de desenhar, mas ainda não é apreendido. É o não sentido de Winnicott. Zero de intensidade do coordenador e máximo registro de conexões no grupo. Micropercepção, sem hipóteses. Cenas como linhas tênues que produzem desterritorialização e reterritorializações. Máximo de lúdico. São linhas a-representativas. Máxima ambigüidade. Maior número de informação e menor evidência de significados. Maior contingência para o acaso. Maior possibilidade do coordenador desaparecer anonimamente. Menor percepção de técnicas. O coordenador não se sente acompanhado de referências teóricas. Predomina imagens desordenadas que não surgem de uma elaboração prévia. A produção do não sentido exige certo grau de tolerância, pois desperta o medo do vazio e está presente a vontade de voltar a se acompanhar de referências teóricas. Sensações de caos são entremeadas com ilhas de compreensão. Para suportar este estado é necessário aceitar o caos e o luto de estar só e desacompanhado de referências e de autores. É a solidão do criador. CRIA-DOR, como a própria palavra dividida evidencia. Pavlovsky chama de assassinato do pai o fato de ser necessário romper com o ponto de vista do segundo universo (molar) e com os seus acompanhantes referenciais, os autores. É necessário inventar formas próprias. A sensação de tempo é de uma duração longa e de impossibilidade de calculá-lo cronologicamente, semelhante aos estados oníricos. O ponto de vista do primeiro universo (molecular) trabalha com intensidades e fluxos. Aproxima-se da lógica do processo primário. Também aproxima-se da categoria de primeiridade da Semiótica de Pierce, isto é, aquilo que tem frescor, corresponde ao acaso, originalidade irresponsável e livre, qualidade e intensidade puras. Aproxima-se do campo da metapráxis, de Moreno. Esse ponto de vista está situado no limite entre a incompossibilidade e a compossibilidade. É o que popularmente se chama de juntar alhos com bugalhos. Não se preocupa em separar o que é do mundo exterior do interior. Não trabalha com categorias personológicas.
Em todo trabalho psicoterápico que se baseie nos estados de espontaneidade, existe uma constante oscilação entre os dois estares: do primeiro e do segundo universo moreniano (o molecular e o molar). Para sair do segundo universo moreniano (molar) e entrar no primeiro universo moreniano (molecular) é necessário passar por momentos de transgressão da ordem do segundo universo moreniano (molar). Isto produz um prazer quase erótico ligado ao salto no vazio. Também produz medo de confusão, caos, medo da loucura e da própria espontaneidade.
Segundo Fiorini, os processos criadores tem um tipo de pensamento e de temporalidade próprios diferente dos ligados aos processos primários ou secundários (freudianos). Seria um processo terciário próprio destes processos criadores. (12)
O ponto de vista do segundo universo moreniano (molar) está mais ligado a um deslocamento de representações sem levar em conta as suas intensidades, produzindo metáforas, enquanto o ponto de vista do primeiro universo moreniano (molecular) é mais sensível às intensidades e qualidades; embora também produzindo metáforas, está mais ligado à produção de novos sentidos (13p.75-85). São criações de novos sentidos que não podem ser encapsulados numa interpretação centralizadora unívoca, como por exemplo o desejo edipiano.

PRIMEIRO UNIVERSO
Características e ansiedades básicas:
• Fome de atos sem observador
• Dependência materna – cluster um
• Exige complementar que o satisfaça e/ou que dê prazer
• Diferenciação: vivo / coisa – sentir-se vivo

• Sentir-se especial e único
• Sentir-se um com o mundo –fusão

• Desintegração / não integrado

Acesso ao íntimo pela ressonância:
A segunda contribuição da multiplicação dramática para o reconhecimento e compreensão dos estados espontâneos / criativos diz respeito à maneira pela qual os estados de espontaneidade atingem o íntimo do outro, constituindo-se uma referência àquilo que o diretor deve procurar e incentivar. Não se trata da indagação cada vez maior a respeito do protagonista, mas de ressonância. É freqüente pacientes que participam de cenas multiplicadas se referir a uma certa confusão e não saber se a cena que multiplicou diz respeito a si mesmos ou ao protagonista inicial, embora cada membro do grupo se sinta profundamente singularizado. É um singular dentro de um coletivo e não voltado para si mesmo. É do coletivo de enunciação. Trata-se de um momento de confusão criativa. São cenas que já não são do “eu” nem do “tu”, mas harmonias novas, sem a separação do eu e do tu, do interno e do externo. Aproxima-se de uma vivência semelhante à do primeiro universo moreniano. É um ato de acompanhamento molecular, produção de harmonias moleculares. São rizomas moleculares, linhas de fuga da visão monocular narcísica (sempre a mesma versão que conto a meu próprio respeito, totalitária e uníssona – mito fundante do eu). Penetram no íntimo do outro através de ressonâncias e pela sua capacidade de induzir ressonâncias. O acesso ao íntimo do outro não se dá por meio da indagação ao outro, mas pela ressonância multiplicadora (14p.96).Tanto a multiplicação dramática como o compartilhar tem esta função, embora de maneiras diferentes.
Penso que este estado de confusão criativa (nem Eu nem Tu) assemelha-se às sensações do ego auxiliar ao fazer um duplo (na sua segunda fase quando expressa suas próprias sensações no aqui e agora, supondo que essas sensações também são do protagonista) e também às características do primeiro universo moreniano, mais especialmente a segunda fase, isto é, o período da identidade total diferenciada ou realidade total. Esta fase caracteriza-se por: decréscimo da fome de atos; começo da diferenciação entre objetos e pessoas; início das relações a distância ( tele ); início da possibilidade de registro de sonhos. É uma fase onde o Eu ainda é profundamente vulnerável ao clima do ambiente que o circunscreve, é quase como se não existisse pele, a separação física entre o interno e o externo. O Eu é atravessado pelo ambiente. Pavlovsky expressa-se da seguinte maneira o que é o aproximar-se do estado espontâneo: “Sei que ao lado do meu grande momento de fechamento e loucura, está o máximo poder da minha verdade ali tocando-se aparece o máximo da minha capacidade criadora “…”Quando começo a sofrer pelo meu caos interno que produz o personagem, estou perto da verdade do personagem” e, logo em seguida afirma que flui a criatividade e diminui a dor (15p.38). O ator quando está num momento criativo entra numa dimensão única situada num fio entre o real e o imaginário, numa situação poética no sentido de um acontecer artístico. O protagonista de um psicodrama começa o que parece ser um jogo imaginário, que logo se transforma em uma evidência do que ele negou ou dissociou até então. Passa a reconhecer que o jogo não é só ficção, mas é representação de fatos da sua vida. Contudo, no início do momento da criação, predomina os sentimentos de surpresa e de insólito, muitas vezes de pesadelo. É o contato com o inominável, o estranho, o familiar, o sinistro. Passado o susto, ou junto com ele, surge o prazer da descoberta e de ter configurado uma criação estética; é o maravilhoso, vivência do estado espontâneo/criativo com sua sensação de completude e reparação.

Semiótica :
É necessário, ainda agregar a esta lista de características do ato espontâneo / criativo o que Eco, a partir das idéias de Jakobson, propõe como característica das obras de arte que, a meu ver se aplicam aos estados espontâneos / criativos. Ele diz que a obra de arte se constitui uma mensagem ambígua e auto-reflexiva para o fruidor ( platéia ). Entendo que a ambigüidade esteja relacionada a um código pré-existente que se torna questionado. A auto-reflexão diz respeito à capacidade de despertar a atenção para a própria diversidade e originalidade. Ambas as características produzem elaboração (16p.79). No psicodrama autor e platéia se alternam ao passo que na multiplicação dramática o autor da cena original, que é a multiplicadora, é a platéia da cena ressonante, multiplicada. Na obra de arte, produtor e fruidor (consumidor) não estão sobrepostos. Esta característica do psicodrama de sobrepor o produtor e o fruidor da mensagem estética (estado de espontaneidade criatividade) produz um efeito de reverberação da ambiguidade e da auto-reflexão. Estas últimas características Moreno muito bem identificou como sendo de efeito terapêutico.
Do ponto de vista da semiótica, penso que as técnicas básicas do psicodrama (duplo, espelho, solilóquio, inversão de papeis e concretização ) situam-se no eixo da metonímia e os articuladores de cena no eixo da metáfora. Penso que aqui aplica-se a conceituação semiológica de Saussure a respeito dos dois eixos da linguagem, retomada por Barthes e também desenvolvida por Freud e Lacan. Freud, considerando a condensação e o deslocamento como os mecanismos básicos do sonho, e Lacan, ampliando e comparando estes mecanismos básicos com as figuras de linguagem da metáfora e da metonímia. É importante notar que Barthes assinala que os fenômenos criativos estão relacionados à passagem do eixo metonímico para o metafórico, isto é, o transbordamento de um eixo da linguagem provoca uma subversão de sentido e se inicia um fenômeno criativo (17p.63-90). Esta última afirmação confere com algumas observações clínicas que tenho feito, no sentido de ser possível encarar a resistência no processo psicodramático como uma dificuldade de passar de um eixo da linguagem para outro. De tal maneira que o eixo da metáfora e da metonímia podem se articular como defendido e defesa alternadamente. Desse ponto de vista, a resistência não é só estar preso ao eixo da metonímia, mas sim estar preso, estereotipadamente, a qualquer um dos dois eixos. E a articulação e passagem pelos dois eixos no processo psicodramático caracterizaria a passagem por estados de espontaneidade/criatividade.

Narcisismo:
Rolim, Vera indica de maneira muito clara como na vivencia cotidiana podemos nos aproximar daquilo que se nomeia de narcisismo: “Quem sou eu? Como me sinto na relação comigo mesma? Considero-me uma pessoa com valor, com capacidades? E os meus limites? Vejo-os? Como? Em geral gosto de mim? Posso admitir faltas minhas sem matar ou morrer metaforicamente falando? Conheço meus ideais? Realizo-os ou me encaminho até eles? Sou ativa nisso? O que eu acho de mim mesma? Tenho desejo de brilhar? De ser admirada? Admiro pessoas que possam constituir modelos para mim? E os meus valores?” (14-18)
Já no contexto psicoterapeutico um dos indicadores para o psicoterapeuta de que está frente a uma questão narcísica é quando o psicoterapeuta se sente desconfortável, com a sensação de não estar entendendo, de não estar acertando ou achando a sessão difícil. O paciente não aceita o psicoterapeuta e as suas intervenções.(19) O paciente pode, por exemplo, ficar furioso na sessão reclamando da atuação do psicoterapeuta, desqualificando-o e provocando sentimentos de raiva e impotencia no psicoterapeuta(20)
Para definir conceitualmente (21) narcisismo começamos pela pergunta do que é a realidade? E a resposta é paradoxal: não há realidade Real, a realidade é uma construção que começa sendo uma projeção da vivencia interna. (ver psicodrama da queda de deus de Moreno no início deste artigo). O narcisismo é este tipo de construção projetiva da realidade que nos acompanha toda a vida. Assim sendo o narcisismo se constitui num sistema processual (ligado a formação de ideais, da auto-estima, da espontaneidade / criatividade e da capacidade para se abrir ao mundo) que esta na base da singular da maneira pela qual vemos a realidade (nossa subjetividade).
Moreno nunca usou o termo narcisismo na teoria do psicodrama, mas podemos localizar este sistema processual narcísico no primeiro universo da matriz de identidade da teoria psicodramática e nas vivências das técnicas do duplo e do espelho.(18,20-22)
O ego-auxiliar (ou quem assume as funções maternas) desempenhando essas técnicas busca afirmações ou confirmações dentro dessa vivência da matriz de identidade total. Marca vivências de completude e de ser ideal, centro desse universo. É da habilidade do ego-auxiliar de ir apresentando paulatinamente uma realidade que possa ser aceita pelo protagonista e não mutile essa vivência de formação de ideais que dependerá posteriormente os seus ideais, a auto-estima (23) a sua capacidade de abertura para o mundo e a sua espontaneidade / criatividade.
O que Moreno chama de identidade, Freud chama de identificações primárias (ou identificações de ser); e o que Moreno chama de identificações, Freud chama de identificações secundárias (ou identificações de ter).
O mundo do primeiro universo moreniano é sentido à imagem e semelhança de nossa necessidade de se sentir um ser especial ideal. Quando o ego-auxiliar confirma essas vivências e apresenta um caminho possível, o sofrimento do crescimento é mais suportável. Quando isto não ocorre o crescimento é vivido como um ataque desintegrador ao ser.
A medida que passamos para o segundo universo moreniano nos afastamos das condições que nos geraram e vamos conquistando independencia para satisfazer nossas necessidades. Vamos nos afastando de ser ideal para ter ideais. Renunciamos ser um ideal perfeito para ter ideais a alcançar e portanto reconhecemos imperfeições e nos humanizamos.
Para alcançar a vivência reparadora de estar num estado de espontaneidade / criatividade é necessário passar por vivências que re-percorrem os universos morenianos, tal como cada um vivenciou. O sistema narcisista nos informa sempre a mesma versão única e totalizadora, monocular a respeito de nós mesmos. A passagem pelos estados caóticos (moleculares) é muito sofrida pois é sentida como desintegradora para o ser. A capacidade de sentir os estados caóticos como não integrado (e não desintegrado), e portanto menos ameaçador para o ser, só pode advir de uma maior abertura para o outro, com maior adaptabilidade ao mundo.
O narcisismo patológico encolhe o espaço e o tempo, retira a senssação de profundidade de campo. A sua realidade é totalitária, uníssona e monocular.
Cabe, ainda ressaltar que o mundo atual neo-liberal exalta o consumo frequente através de técnicas que estimulam a constituição narcísica. O consumismo e o narcisismo formam um binômio que se retro-alimentam continuamente (24). Tudo é consumido e descartado como obsoleto rapidamente (fast-food), produzindo uma sensação de isolamento e separação em quem não acompanha. Os novos produtos são apresentados como capazes de restituir um paraíso perdido, restaurar o seu desejo único e singular e apoiar a imagem fortemente idealizada de si mesmo. O isolamento auto-suficiente é enaltecido, e assim fascinados por esta compreensão superior à dos outros ficamos visceralmente dependentes e incapazes de distinguir o que é uma demanda genuinamente própria do que é uma demanda insuflada.
A capacidade psicoterápica está relacionada com a possibilidade de gerar mudanças na relação consigo mesmo e com os outros. Com a capacidade de gerar novas versões a respeito de si mesmo (questionar o mito fundante do eu). Os estados de espontaneidade / criatividade que atravessam o grupo psicodramático e os seus integrantes se constituem no fundamento desta capacidade.
Resumindo, o NARCISISMO é um sistema psíquico fundado no primeiro universo e portanto mantém algumas características dele, relacionando-se a:

. Auto-estima

. Formação de ideais

• Produção de espontaneidade / criatividade, isto é, produção de subjetividade

Referências Bibliográficas:
1. Moreno JL.
 J.L.Moreno autobiografia. 1 ed. São Paulo: Editora Saraiva, 1997.
2. Castillo TH. “Transtorno narcisista y borderline: una frontera permeable?”
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3. Moreno JL. O Teatro da Espontaneidade. São Paulo: Summus Editorial, 1984.
4. Fonseca Filho JdS. Psicodrama da Loucura. Correlações entre Buber e Moreno. 1 ed. São Paulo: Ágora, 1980.
5. Moreno JL. Psicodrama. In: Cultrix E, ed. Psicodrama. São Paulo, 1975: 231-332.
6. Kesselman H, Pavlovsky E. La noción de entre en psicodrama. Clinica y Analisis Grupal 1995;17(1):75-78.
7. Canguilhem G. O normal e o patológico. 1 ed. Rio de Janeiro: Forense universitária, 1978.
8. Bustos DM. O Teste Sociométrico. Fundamentos, Técnica e Aplicações. 1 ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1979.
9. Mascarenhas P. “Multiplicação dramática, uma poética do psicodrama”. credenciamento para prof. supervisor: SOPSP, 1995.
10. Pavlovsky E. “Psicodrama analítico. Su historia. Reflexiones sobre los movimentos francés y argentino”. In: Pavlovsky E, Kesselman H, Baremblitt G, Brasi JCD, eds. Lo Grupal. Buenos Aires: Búsqueda, 1988: 11-54.
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Novas reflexões sobre o conceito de espontaneidade/criatividade, multiplicação dramática e narcisismo
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