A Reversibilidade do Phármakon en seus destinos

INTRODUÇÃO
Este ensaio nasceu do interesse clínico da articulação entre psicanálise e medicação, na clínica contemporânea. Por um lado a identificação de adições iatrogênicas 1Iatrogenia: alteração patológica provocada no paciente por tratamento de qualquer tipo 1.Ferreira, A.B.d.H., Novo Dicionário da Lingua Portuguesa. 1975, Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira. 1517. , e por outro a necessidade do reconhecimento da eficácia do possível trabalho conjunto entre psicanálise e medicação me estimulou a trilhar este caminho.

O trabalho está estruturado em três partes. Inicia com PHÁRMAKON, ESCRITA E PSÍQUICO, um comentário do diálogo do Fedro de Platão e a questão da escrita e da fala nos seus benefícios e malefícios, evidenciando-se a complexidade e o conceito de reversibilidade do phármakon. Na segunda parte A DROGA PERFEITA , A IATROGENIA E A CLÍNICA um contra ponto da ficção da droga perfeita e do seu uso clínico benéfico. Na terceira parte O PRINCÍPIO PHÁRMAKON NAS TOXICOMANIAS o específico das toxicomanias, a operação phármakon e suas características.

Ao longo deste trabalho aparecem enquadrados alguns fragmentos de relatos clínicos.

1 – PHÁRMAKON, ESCRITA E PSÍQUICO

O termo phármakon 2Estou traduzindo farmakon em castelhano por phármakon , segundo a tradição hipocrática platônica , assim grafado, insere-se na tradição hipocrática platônica.

Em 1968, Jacques Derrida , interessado na questão da escrita, retoma esta tradição ao escrever “A farmácia de Platão” 3Jacques Derrida (1930-2004), Filósofo francês argelino, cujo trabalho originou a escola da desconstrução, uma estratégia de análise aplicada à literatura, lingüística, filosofia, direito e arquitetura. Em 1967 publicou Gramatologia e A escrita e a diferença onde introduziu o ponto de vista da desconstrução, focado na linguagem, aponta para múltiplos significados da fala dependentes tanto quanto do leitor, seu contexto e do autor.. Nele percorre, entre outros textos de Platão os diálogos do Fedro e aponta a correspondência entre a escrita e o phármakon, no sentido da ambigüidade ou ambivalência, como remédio e veneno.

O mito de Theuth Deus da mitologia egípcia, o mais misterioso e distinto de todas as outras divindades. Deus da sabedoria e da autoridade, é o registrador e o juiz. Porta a vara serpentina, que se converteu no caduceo de Esculápio, deus grego da medicina. Caduceo [Do lat. caduceu.] Substantivo masculino.
1.Bastão com duas serpentes enroscadas e com duas asas na extremidade superior. 2.Esta insígnia que, a partir do séc. XVI, foi adotada como símbolo da Medicina.1. Ferreira, A.B.d.H., Novo Dicionário da Lingua Portuguesa. 1975, Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira. 1517. , pai do jogo, do número e da escrita é citado num trecho do diálogo Fedro de Platão: Theuth vai ao palácio do rei para mostrar seus inventos, este lhe pergunta a respeito de suas utilidades e sobre a escrita Theuth fala

– “Eis aqui, oh Rei, um conhecimento que terá por efeito tornar os egípcios mais instruídos e mais aptos para se rememorar: memória e instrução encontraram seu remédio (phármakon).”

Mas o rei refuta dizendo sobre esta invenção:

– “provocará nas almas o esquecimento de quando se aprende, devido à falta de exercício da memória, porque confiados na escrita, recordar-se-ão de fora, graças a sinais estranhos e não de dentro, espontaneamente, pelos seus próprios sinais. Por conseguinte não descobriste um remédio para a memória, mas para a recordação.”[4]


Theuth caduceo
Platão mostra Theuth apresentando a sua invenção pelo aspecto mais tranqüilizador, anulando a ambigüidade e tornando difícil a compreensão. O aspecto de uma potência oculta que mal se domina os efeitos está presente em phármakon e não em remédio.

Penso que esta passagem entre sentidos contrários da mesma palavra, (por exemplo: remédio e veneno) neste texto, é muito diferente de uma confusão ou alternância de contrários. Os pólos das diversas acepções não tem uma relação entre si de exterioridade. Platão faz o rei, como pai da fala, afirmar a sua autoridade sobre o pai da escritura, Theuth. Porém, diferentemente do pensamento platônico, podemos apontar que é somente através da sua estrutura ambígua, reversível e de engendramento mútuo dos seus pólos que se pode apontar a potência do contexto ligado a phármakon. O limite entre os diversos pólos não os separam simplesmente, mas é na passagem entre pólos, numa posição de quase-equilíbrio, que é possível visualizar sua potencialidade. Trata-se de mostrar a contradição lógica em vez de anulá-la.

Interessante o sentido de reversibilidade na sua acepção física que o Dicionário Aurélio[1] traz:

“reversibilidade
[De reversível + -(i)dade, seg. o padrão erudito.]
2.Fís. A característica de um processo no qual em todos os estágios o sistema se encontra num estado de quase-equilíbrio.

E a palavra – reversível – entre diversas acepções aponta para:

reversível
[Do lat. reversus, ‘voltado para trás’, + -ível.]
Adjetivo de dois gêneros.
2. Que pode retornar, ou retorna, ao primitivo estado; reversivo.
3. Que pode ser observado ou utilizado pelo anverso ou pelo reverso:
escultura reversível. 

O que destaco destas acepções é:

– o caráter de quase-equilíbrio do sistema. Um engenheiro amigo meu, numa comunicação pessoal, me informou que este é um conceito da termodinâmica e que, mais precisamente, se refere a um sistema onde as transformações se fazem sem alteração da energia total, pois quando há alteração nesta quantidade total de energia, o sistema se torna irreversível 4Comunicação pessoal de Fernando Landgraf. Como exemplo de sistema reversível apontou a mola que se deforma e depois volta ao estado original, sem perda de energia.

– que pode retornar ao estado primitivo, voltado para traz;

– que pode ser observado ou utilizado pelo anverso ou pela reverso.

Veremos que estas três características acompanham os diversos destinos aqui apresentados da reversibilidade do phármakon.

Neste ponto, talvez ajude caracterizar as quatro possíveis acepções de phármakon [5] que podem nos indicar suas possíveis propriedades:

A- Remédio/veneno – será remédio (bom) ou veneno (mal) conforme a dosagem adequada ao estado do paciente. Platão apresenta a íntima trama entre linguagem e medicação. Considerava que a linguagem pode ter semelhanças com o pharmakon, pois, se pelo diálogo, conseguimos descobrir nossa ignorância e aprender; por outro lado, também pode ser um veneno quando, pela sedução das palavras, nos faz aceitar verdades, fascinados, sem que indaguemos se tais palavras são verdadeiras ou falsas.

B- Verdadeiro/falso – será valorizada a aparência no lugar da essência, pode fazer algo parecer outra coisa, como os medicamentos sintomáticos. A linguagem, por um lado, pode ser tintura ou máscara para dissimular ou ocultar a verdade sob as palavras; e por outro lado pode apontar caminhos significativos.

C- Fala/escritura – retomando o diálogo platônico, conforme a origem da expressão seja a escrita (de fora) ou a fala (de dentro), isto é, do endon ou do exo 5Essa distinção foi introduzida na psiquiatria por Moebius, em 1892. Endógeno, então é considerado um predicado do degenerativo e etiológicamente ligado ao somático. Segundo Fédida e Berlink 6. Berlink, M.T., A clínica da depressão: questões atuais ( com Pierre Fédida), in Psicopatologia fundamental. 2000, Escuta: São Paulo. p. 73-92.pag81, isto indica a íntima relação com a catástrofe, a insuficiência e o somático e a psiquiatria ao ver, acertadamente, o singular de tais psicoses chamadas de endógenas ( a psicose maníaco-depressiva é seu paradigma) logo somatizou o seu conceito. Endógeno ficou restrito a fonte somática, no seu sentido de bioquímico e genético, em sua grande parte mesmo que não comprovado, mas com esperança de que se comprove, portanto um espaço negativo. Mas Fédida e Berlink acompanhando Tellenbach 7. Tellenbach, H., A endogenicidade como origem da melancolia e do tipo melancólico. Revista Latinoamericana de psicopatologia fundamental, 1999. 2(4): p. 164-175. (1969) indicam o espaço positivo do conceito. O endon se refere a instância espontânea original que se manifesta nas formas fundamentais do ser do homem, tanto saudáveis como doentias. Endon seria o involuntário singular que caracteriza o ser do homem ao longo do tempo. Uma manifestação antecipada da singularidade do homem. Em outro trecho Fédida 8. Fédida, P., Dos benefícios da depressão elogio da psicoterapia. 1 ed. 2002, São Paulo: Escuta. 224.pag165 aponta para o endon como um valor de regra no método clínico psicoterapico, no sentido que o movimento mais favorável para a evolução de um indivíduo é o que vem de dentro, que nele nasce por sua espontânea ação, acrescentando que a arte psicoterapeutica estaria em reconhecer esta singular emergência e de conceber a doença na sua definição alérgica, isto é, defesa ante fatores estranhos.. Pode afirmar a memória retida na escrita encorajando o esquecimento de si ou pode se aliar intimamente com a fala que vem do interior do paciente, favorecendo a nomeação de sua verdade singular. Ler a bula pode facilitar a recordação ou o induzir o esquecimento da própria história do paciente, segundo se adote mais ou menos dogmaticamente os escritos da bula

D- Como objeto numinoso
 – se refere à função mágica e expiatória, ligada à expectativa de cura do paciente e à autoridade de um suposto saber do médico ou da escritura/fala.

Girando o caleidoscópio, mudando o nosso ponto de vista para a clínica psicanalítica, mas conservando as bases do raciocínio anterior, Fédida 6Pierre Fédida (1934-2002) foi filósofo, psicólogo, psicanalista, membro da Association Psychanalytique de France (APF), Professor da Université Paris VII – Denis Diderot onde dirigiu o laboratório de Psicopatologia Fundamental e Psicanálise e o Centre du Vivant, membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental e do Conselho Científico da Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, autor de numerosos artigos e livros que têm sido traduzidos em diversas línguas e, em português, publicou Clínica psicanalítica: estudos (1988), Nome, figura e memória. a linguagem na situação psicanalítica (1992), O sítio do estrangeiro. A situação psicanalítica (1996) Depressão (1999) Dos benefícios da depressão –elogio da psicoterapia (2002). no texto “A fala e o phármakon”, preocupa-se com a generalização crescente do uso de psicotrópicos. A generalização crescente do uso de psicotrópicos e em particular dos antidepressivos, principalmente pela prescrição de médicos generalistas, com o aval de psiquiatras biológicos, é um fenômeno que não pode passar desapercebido. A venda idealizada dos antidepressivos, estimulada pela industria farmaceutica, a crença na absoluta eficácia das drogas para debelar o sofrimento humano, a descaracterização do psíquico inerente à lógica estatística sintomática das classificações diagnósticas do CID-10 e DSM-IV, a ideologia da produtividade, o crescimento da neurofarmacologia apresentando-se como a mais científica das abordagens da mente, a sempre anunciada morte da psicanálise, são alguns relevantes aspectos da complexa problemática da clínica atual.

Neste texto o autor nos traz uma discussão sobre o tratamento do psíquico pelo químico e, ao final, procura esclarecer o enigmático tratamento do psíquico pelo psíquico nas suas articulações com as condições para que a fala, como um phármakon, possa favorecer ou não a interiorização da ação medicamentosa.

2 – A DROGA PERFEITA , A IATROGENIA E A CLÍNICA
Fédida inicia sua reflexão solicitando que o leitor imagine uma droga perfeita, que concederia ao químico, competências para produzir percepções protegidas do seu próprio sentimento de alteração. Oferecendo as vantagens de auto-engendrar um bem estar e prazer que se constituiria numa cura. Tal tratamento teria, idealmente, as características naturais de um insight. Levantamento do recalque. Com as vantagens da avançada droga perfeita de última geração, não produzir dependência e sem riscos dos efeitos secundários. Tal droga teria a própria natureza do psíquico e seu autoerotismo. Essencialmente psicotrópica. A própria condição alucinatória da autopercepção narcísica nos processos bioquímicos de seus neurotransmissores. Assim descrito o psicotrópico desafiaria o próprio sintoma e seu significado, tornando-o obsoleto. O psicotrópico se desinteressaria do próprio sintoma. Sua mediação bioquímica seria uma réplica dos sintomas. O sintoma como tentativa de cura do psíquico seria uma lenda, superada. O psicotropismo destas drogas teria a ação de anular o psíquico como sintoma, por um meio químico que desfaz o sintoma, ao mesmo tempo que o propriamente psíquico. Trata-se, aproximando-se da sua utopia, de uma vida psíquica assintomática. Na clínica psicoterápica, estariam necessitando de um radical upgrade os conceitos de transferência, inconsciente, trabalho psíquico e da natureza sintomática do psiquismo. A psicopatologia, a natureza do psíquico, sua evolução e os processos clínicos seriam figuras apagadas. Qual é o efeito das medicações sobre a disposição masoquista dos pacientes? Qual é o efeito do discurso biologisante sobre os pacientes e a sua capacidade de assumir responsabilidade sobre seus sintomas? Qual é a relação entre o corpo erógeno, suas representações, seu gozo e a medicação prescrita? Perguntas que perderiam a sua necessidade, pois as mediações neurobioquímicas, deslocando o centro dos debates, seriam suficientes para responder.

Esta ficção da droga perfeita aponta para várias características que veremos no item das toxicomanias como suas características específicas: “ o psicotropismo destas drogas teria a ação de anular o psíquico como sintoma, por um meio químico que desfaz o sintoma, ao mesmo tempo que o propriamente psíquico7Ver item 3.3 C – Reversibilidade do aparecimento e desaparecimento do sujeito .

Encerrando a apresentação da ficção da droga perfeita, mas, por outro lado continuando com a questão podemos nos perguntar, junto com Fédida: como o conhecimento da ação terapêutica pelo psíquico pode determinar as incidências da ação psicofarmacológica? A ação das poções tem a sua eficácia aumentada pela emergência das palavras, imagens e ações significativas. No caso do tratamento do psíquico pelo psíquico, estamos no campo da psicanálise e das psicoterapias que não tem por objetivo a pura e simples eliminação dos sintomas, mas dão valor ao sintoma como expressão mais íntima do psiquismo. O sintoma, assim como o sonho são o próprio psiquismo. Tanto a psicanálise como estas psicoterapias preferem pesquisar os processos de formação do sintoma e do sonho. Mais do que isto, o sonho e o sintoma passam a ser os mestres dos processos de cura.

“É do interior do paciente – que se denomina psíquico – que se forma a interpretação na fala do terapeuta e a magia das palavras pertence a este movimento da ressonância que também é o da des-facinação das imagens. O que se supõem acima de tudo é que a presença em pessoa não seja um obstáculo a esta ressonância (a pessoa será transparente como o ar, diz Freud), nem um tipo de associação sugestiva externa que assim vem recobrir o sintoma.”[9]

Na clínica psicanalítica o sonho é o mestre e a transferência é a condição de apropriação dele. Aqui a fala e a ação psicofarmacológica se entrelaçam. Trata-se de uma maneira de lidar com a reversibilidade do phármakon que permite a circulação entre seus pólos que se auto-engendram, tendendo ao desequilíbrio, à irreversibilidade.

Fédida recorre ao conceito grego de pharmakon e à leitura que Derrida (“A farmácia de Platão”) fez de “Fedra” de Platão, acima resumidamente expostos, para iluminar a compreensão da questão.

O pharmakon, a fala, o psiquismo, o sintoma e a transferência se entrelaçam na clínica psicoterápica. No método clínico psicoterapeutico privilegia-se o que vem de dentro, o endon, é nele que nasce uma ação própria do psíquico e é através dele, de sua livre manifestação singular, que o terapeuta age. Trata-se de uma doença que vem de dentro e é através do próprio endon que se clinica, isto é, se utiliza aqui do modelo da alergia. O psíquico seria uma defesa contra fatores estranhos. A intervenção do pharmakon como algo que vem do exterior, exógeno, precisa ter esta íntima conexão com a fala, como manifestação endógena da vida. Trata-se de ver o pharmakon através da semelhança com o psíquico. Quando se pode do interior reconhecer esta substância, interiorizá-la, recriá-la como própria, descobrir suas próprias fontes internas (endon), estamos diante dos seus efeitos benéficos 8Podemos pensar aqui na recuperação da escrita pela fala, isto é, recuperação do saber de Theuth através da fala do rei . O pharmakon em sí não é remédio ou veneno, sua bi-valência é sempre móvel, mas seu lugar de regulação entre o endon e o exo e sua articulação com a fala, o sintoma, o psíquico e a transferência é que precisa ser destacado. Essa articulação é seu lugar de semelhança com o psíquico, como objeto intermediário, como ressonância, como corpo, como pharmakon encarnado, e não como prótese rígida, na situação a dois da psicoterapia. As relações do paciente com o psicoterapeuta fazem parte integrante do pharmakon. Substância e não substância ao mesmo tempo.

O paradigma do pharmakon, como substância e não substância, deve ser apreciado na clínica terapêutica, do ponto de vista do desvio que regula/desregula o endon, entendido como a expressão do que vem de dentro, espontaneamente, do ser humano. Os médicos que receitam bem os antidepressivos sabem da necessidade de compreender os tempos próprios da doença: cedo demais, aumenta seus efeitos e os empobrece clinicamente. É o conhecimento da ação terapêutica do químico pelo psíquico que é própria para determinar as suas incidências. A bifocalidade terapeutica (psicoterapia e farmacoterapia), quando indicada, não pode excluir, no psicoterapeuta a sensibilidade clínica, dada pela escuta e do reconhecimento dos tempos próprios da doença.

O que se espera da farmacologia é que, guiada pela escuta psicoterápica, ela adquira uma eficácia mais adaptada à singularidade do paciente. As pesquisas farmacológicas atuais se afastam desta proposta, pois só estão interessadas na resposta automática que faz desaparecer o sintoma.

A atual farmacologia, a neurofarmacologia molecular, trabalha com uma clínica – a-clínica. Está interessada na prescrição padronizada, instantânea, para um amplo espectro de complexas situações que são achatadas nas suas nuances. É a inteligência da molécula que irá produzir o alívio, sem se interessar pela descrição e compreensão psicopatológica, que passam para um segundo plano. Mais do que isto, trata-se de uma postura médica e da subjetividade contemporânea que estimula, iatrogênicamente, toxicomanias.

Uma paciente em processo de psicoterapia vai consultar um ginecologista e durante a consulta faz referencia à sua tristeza. Rapidamente o médico fala : “ está triste toma antidepressivo” . Faz a receita e marca um retorno para daqui há 6 meses.

Um homem de 55 anos passa por uma crise emocional ligado à perda de vínculo matrimonial. Consulta um psiquiatra de outra cidade bem distante que o medica e marca retorno a cada seis meses. Como não melhora introduz novas medicações e aumenta as dosagens. Isto produz no paciente um estado de confusão e sensação de total abandono.

3 – O PRINCÍPIO PHÁRMAKON NAS TOXICOMANIAS
Sylvie Le Poulichet 9Sylvie Le Poulichet é psicanalista, professora da Universidade de Paris VII. É também diretora de pesquisa da Escola doutoral de psicanálise desta universidade designa como “operação do phármakon” a especificidade do ato que cria uma toxicomania [2]pág 51, E ela se caracteriza por dois aspectos fundamentais: 1. estabelecer as condições de percepção e satisfação alucinatória; e 2. produzir um cancelamento tóxico da dor.

Os princípios do phármakon acompanham todos os usos de drogas, mas a operação phármakon é criada somente nas toxicomanias. Ela cria um novo órgão-psique onde se dá uma certa autonomia de circuito pseudo pulsional. ( ver discussão, mais adiante)

A autora aponta para a construção de um marco de referência na clínica das toxicomanias por oposição à toxicomania , no singular.

Não se trata de um novo funcionamento psíquico como a repressão ou a forclusão, mas é necessário a ocorrência da operação phármakon embora não seja suficiente para caracterizar clinicamente determinado paciente toxicômano. Certos estados ou hábitos relativos ao uso de droga podem se relacionar à restituição de um estado de sonho, enquanto que a operação phármakon se presta mais a quem já não sabe sonhar. Enquanto que o sonho alucina, inventando corpos e os figurando, para o desejo, a operação phármakon parece restituir o corpo, como objeto alucinatório, para borrar representações intoleráveis. Acompanhando a autora, foi Freud quem apontou que a droga não é o tóxico. “ A adição à hipnose representa, com efeito, o paradigma clínico das manifestações tóxicas no seio de uma relação” e ainda acrescenta que a operação phármakon realiza uma forma insólita de desaparição do sujeito, enquanto que o tóxico não pertence a ninguém. [2]pág 199

Ela introduz seu pensamento evocando noções clássicas da toxicomania como a questão da dependência e da abstinência, sobretudo esta última que melhor irá permitir avançar seu pensamento.

Sylvie começa pela critica da concepção médico-psicológica-comportamentalista de duas maneiras: primeiro pelo questionamento do princípio onde um organismo é separado de um corpo estranho, ou um sujeito de um objeto, sendo que os primeiros recuperam sua integridade após a separação dos influxos mórbidos; segundo fazendo a crítica ao pensamento clássico segundo o qual os toxicômanos devem ser tratados num primeiro tempo da intoxicação fisiológica para depois, num segundo tempo passar ao psicológico.

Baseando-se em algumas falas de pacientes, a autora avança no seu pensamento, considerando-o verdadeiras metáforas balizadoras.

“A droga é meu braço direito.”

“ Sou como uma esponja, recupero minha forma com a cocaína.”

“ Sem droga agora, é como se fosse amputado, é como se faltasse um membro do corpo e me doesse …é um membro fantasma.”

[2]pág 53

O phármakon parece emprestar um corpo como prótese e sua ausência produz mutilação. Esta última fala articula metaforicamente duas dimensões essenciais da operação phármakon: o alucinatório e a dor.

3.1 – O alucinatório
O tóxico ausente provoca o aparecimento de um órgão doloroso, pondo em jogo o investimento de zonas corporais e o fenômeno alucinatório do membro fantasma dolorido. Um fenômeno limite entre o psíquico e o somático. Assim o membro fantasma aparece como corpo / órgão que lhe falta para recuperar a sua completude. Ao mesmo tempo, o caráter de satisfação alucinatória imediata elimina qualquer possibilidade de modelar este corpo nas cadeias significantes, o que o transformaria num corpo erótico.

Este membro fantasma como fenômeno alucinatório nos remete, acompanhando a autora, para o conceito freudiano de satisfação alucinatória primária. A operação de phármakon cria as condições de uma percepção e satisfação alucinatória, semelhante ao sonho, o membro fantasma. Seria uma identidade de percepção. Uma espécie de semivigília, uma retirada dos investimentos do mundo exterior, um retorno narcísico que tenta ligar as excitações, restabelecendo a ilusão de um narcisismo absoluto. Este estado de sonambúlico marca a abolição da temporalidade, constituindo um mundo contínuo, sem cortes, sem antes e depois. A abstinência provocaria a irrupção de uma descontinuidade semelhante ao despertar. Outra conseqüência característica seria a abolição das oposições distintivas espaciais, um borramento da barreira entre o dentro e o fora. Um esgarçamento do filtro que regula as relações entre o endon e o exo. Este modo de satisfação alucinatória caracteriza um investimento libidinal onde não há diferenciação entre o eu e o outro. O que permitiria a sua superação seria o que Freud chama de “amarga experiência da vida”, isto é, o aprendizado que a descarga motora e a satisfação alucinatória dos desejos não pode trazer a satisfação almejada e fugir da dor. Através da alternância de presença, ausência do objeto maternal, a introjeção de sua presença e de sua integração em verdadeiros circuitos pulsionais surgiriam fenômenos de linguagem, temporalidade e as cadeias significantes.

3.2 – O cancelamento tóxico da dor
Quando a operação phármakon falha, enquanto retorno narcísico, ressurge a dor narcisista. Dor esta que está aquém do principio do prazer. Trata-se de uma vivência de terror, como contraparte da falência da vivência de satisfação alucinatória primária. Nela toda sorte de excitação adquirem um valor de efração. 10Segundo o dicinário houassis efração é roubo com arrombamento.Sua etimologia indica: fr. effraction (1404) ‘id.’, do rad. do lat. effractus, part.pas. de effringère ‘romper, quebrar, arrombar, destruir’, + -ion; ver -fring- O registro mnêmico já não evoca satisfação, mas uma efração conjugada à vivência de dor. O cancelamento tóxico da operação de phármakon regularia a homeostasis de um aparelho psíquico muito aquém da necessidade, do desejo, da demanda ou da falta, inclusive á margem de qualquer rede de significantes. Esta homeostasis narcísica da operação phármakon provoca um falso circuito pulsional que não envolve o outro e cuja meta não é produzir prazer, mas cessar a dor.

“ Tirem-me o que anda mal dentro de minha cabeça”.

“ Quando tenho droga é como se dentro de minha cabeça se agitasse um dado…todos os pensamentos voltam em todos os sentidos…que me doem” .

[2]pág 66

Que falso circuito pulsional seria este? Estaria ele situado entre a falência da satisfação alucinatória primária e a vivência de terror/efração? Seria um verdadeiro circuito? O que circularia? A operação phármakon engendraria uma homeostasis alucinatória e tóxica aquém do princípio do prazer?

Penso que a idéia de compulsão à repetição ligada à pulsão de morte, como puro pulsar de movimento para dentro e para fora, sem objeto, pura indeterminação, disjuntiva, se aplica neste caso. Uma intensidade que se repete, mas que não encontra o caminho para se diferenciar em qualidade. Um trauma que busca sua superação pela supressão tóxica de estímulos e pela descarga. Trata-se de um sistema fechado com características de reversibilidade, lembrando aqui a analogia com a termodinâmica, onde não há alteração da energia total, não há perda e também não há novo ato psíquico.

3.3 – Figuras de reversibilidade nas toxicomanias
As reversibilidades aparecem aqui associadas á supressão tóxica e aos fenômenos alucinatórios. Esta conjunção que caracteriza a operação phármakon se diferencia das outras figuras de reversibilidade ligadas aos princípios do phármakon por não estar inserido num circuito pulsional que enlace o outro (sistema fechado) e isto ocorre dentro de uma estereotipia que impede movimentos de criação de novos atos psíquicos. São três as figuras de reversibilidade que aqui aparecem:

A – A reversibilidade entre o psíquico e o orgânico. Apóia-se na indeterminação da dor que induz a perspectiva de uma psique-orgão, a qual segue o modelo do órgão fantasma. Trata-se de um psíquico-orgânico que dá origem à substancialização do psiquismo. A operação phármakon ocupa o lugar desta substancialização aparecendo como uma prótese psíquica.

B – Reversibilidade entre dentro e fora. A fronteira dentro/fora se esgarça. Perde-se a regulação entre endon e exo. As formações alucinatórias e as manifestações dolorosas também se apóiam aqui. Esta reversibilidade trabalha de acordo com o modelo do ego corporal primitivo, anterior ao ego narcísico. Não há possibilidade para o corpo se perder no olhar de um outro.

C – Reversibilidade do aparecimento e desaparecimento do sujeito. Pacientes toxicômanos possuem a possibilidade de sempre borrar as representações. A operação phármakon, seria uma proteção anti-estímulo, seria um casco duro. O psiquismo/órgão sofreria toda sorte de efrações quando falha a operação phármakon. Não se trata de uma repressão, mas sim de supressão tóxica que se consolida na dimensão alucinatória. A operação phármakon produz uma essencial continuidade de si consigo mesmo que anula o corte que a fala produziria no sujeito. Corte constitutivo do sujeito que separaria o narcisismo absoluto da representação da ausência.

Assim a operação phármakon modela um novo corpo, um novo órgão/psíquico onde não se inscreve a perda e nem tão pouco recebe a marca dos desejos dos outros. Não é um corpo erógeno, está fora do circuito pulsional. Trata-se de um corpo que não se perdeu no ollhar do outro.
Algo de intolerável não pode ser representado. Mais precisamente, algo não pode servir para marcar e disparar a satisfação alucinatória primária. É este intolerável que seria a condição de sustentação da operação phármakon.

4 – FINALMENTE
Como fazer a operação phármakon se transformar num conflito sintomático? Isto é como transformar um sistema fechado em sistema aberto que permita a inclusão de um objeto, formando um circuito pulsional.

Certamente não é através do desaparecimento do objeto-droga. E certamente passa pelo entrelaçamento da fala com a droga, com a transferência e o possível sintoma. Pela habilidade de fazer o dispositivo analítico de ressoar novas regulações entre o endon e o exo. Pela capacidade do dispositivo analítico de favorecer a emergência de novos atos psíquicos.

O phármakon, suas propriedades e reversibilidades aparecem tanto as receitas legais fornecidas por médicos, quanto nas automedicações das drogas ilegais. Ambas passam pelos mesmos destinos possíveis, remédio e veneno.

O caminho deste ensaio, ressaltando a potência das diversas reversibilidades e irreversibilidades do phármakon restitui a complexidade e a contemporaneidade do assunto no qual de certa maneira todos nós estamos metidos, sejamos profissionais psico afins ou não.

As estreitas relações entre o aumento da drogadição, a des-subjetivação, des-territorialização, o consumo e a globalização, junto com duas das mais lucrativas empresas da atualidade: a legal indústria farmacêutica e a ilegal indústria do tráfico de drogas são algumas das referências e das necessárias ressonâncias, ainda por se fazer suficientemente.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

1. Ferreira, A.B.d.H., Novo Dicionário da Lingua Portuguesa. 1975, Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira. 1517.
2. Le Poulichet, S., Toxicomanias y psicoanálisis Las narcosis del deseo. 1 ed. 1996, Buenos Aires: Amorrortu editores. 216.
3. Derrida, J., A farmácia de Platão. 2 ed. 1997, São Paulo: Iluminuras. 126.
4. Platão, Fedro, in Platão , obras completas. 1974, Aguilar: Madrid.
5. Coura, R., A drugstore de Platão, in Psicofarmacologia e psicanálise, M.C.R. Magalhães, Editor. 2001, Escuta: Sâo Paulo. p. 69-96.
6. Berlink, M.T., A clínica da depressão: questões atuais ( com Pierre Fédida), in Psicopatologia fundamental. 2000, Escuta: São Paulo. p. 73-92.
7. Tellenbach, H., A endogenicidade como origem da melancolia e do tipo melancólico. Revista Latinoamericana de psicopatologia fundamental, 1999. 2(4): p. 164-175.
8. Fédida, P., Dos benefícios da depressão elogio da psicoterapia. 1 ed. 2002, São Paulo: Escuta. 224.
9. Fédida, P., A fala e o pharmakon. Revista Latinoamericana de psicopatologia fundamental, 1998. 1(1)Monografia apresentada em Novembro de 2006 para o curso psicopatologia psicanalítica e clínica contemporânea.

A Reversibilidade do Phármakon en seus destinos
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